terça-feira, 30 de dezembro de 2008

4º Episódio


Veja desde o primeiro episódio http://invernocontraste.blogspot.com/2008/12/1-episdio.html

"armadilha"

Vestígios de sangue e neve remexida criavam uma trilha indesejada para dentro da floresta. Resolvo segui-la. Nas cascas das árvores posso ver marcas da minha infância, quando achava que “treinava”. As pistas me levam. Sigo aquele caminho orgânico, mesmo ele me conduzindo por partes escuras que eu não conheço. O odor fica cada vez mais forte. Posso prever uma visão desconfortável de criancinhas mortas.

Medo. As andanças deram num portão de uma cabana. Uma cabeça de coelho antecede os dizeres “Pureza de corpo e alma”. Avanço mais um pouco. A tensão aumenta. Tudo isso que aconteceu pode ser tanto trabalho de um demente como o de um grupo com ideologias errôneas. Consigo ver pela janela do pequeno aposento.

Vômito. Meu estômago treinado não agüentou depois do que meus olhos viram. Crânios amontoavam-se no que parecia ser um santuário. Dentre eles, posso distinguir o pequenino rosto do menino desaparecido. Uma mão toca meu ombro. Giro nos calcanhares com Glorfinder em punho. Um facho de luz ilumina minha espada, se dependesse de mim, não seria a última batalha com minha companheira de guerra.

Ao virar, fico confuso. Observo os detalhes da cena com atenção. A senhora que me encarou pela janela, agora se apresenta com uma imitação metálica de pernas. Suas sobrancelhas levantam e seus olhos me fitam. Uma voz rouca sai daquela boca enrugada. “Seu tolo! Vamos sair daqui”.

Depois de 15 minutos em silêncio caminhando, resolvo quebrá-lo. “Quem é você minha senhora?”. “Eu sou eu. Faço o que me dá vontade e o que me interessa. Estou caçando esses filhos da puta faz tempo”. “E quem seriam esses?”. “Eles se autodenominam como ‘purificadores’, mas eu ainda prefiro chamá-los de filhos da puta”.

Ela percebe a atenção que eu dou a aquela coisa metálica no lugar das pernas. Ela parece mostrar irritação. “O que foi? Nunca viu uma aleijada? Esses filhos da puta arrancaram minhas pernas, mas eu vou fazer suco com as bolas deles. Meu nome é Linda McAllister, antes que você pergunte”. “Harold the Cunning, prazer”. “Só se for seu”. A falta de etiqueta me fascina.

Outro momento silencioso. “Por que ‘purificadores’?”. “Sabe aquela cabeça que você viu na cabana? Então, eles cortam a cabeça para purificar a pessoa, não sei de mais detalhes, uma velha com pernas metálicas não tem muitas chances de espionar”.

Na orla da floresta, quase na vila, um indivíduo se aproxima. A escuridão da noite se mistura com sua roupa. Ele porta um machado, usa um capuz que só mostra seus olhos azuis e expressivos. Eu seguro firme no cabo da Glorfinder, prevejo sangue. Mais 7 indivíduos trajando a mesma roupa se aproximam. Meus pés levantam poeira, minha espada ganha cor vermelha. Acertam minha cabeça, ela fica quente. Desmaio.






segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

3º Episódio

Veja desde o primeiro episódio http://invernocontraste.blogspot.com/2008/12/1-episdio.html


"desespero"


Açougue. “Olá senhor, gostaria de qual carne hoje?”. “Que tal de criança? Ouvi dizer que aqui tinha”. “Seu senso de humor me enoja”. Percebo que ele se irritou com meu comentário. Exatamente o que esperava. Decido continuar. “Não me faça provar, vai ser pior para sua reputação já suja”. O açougueiro acredita no blefe. Ele se dirige a um aposento nos fundos e faz um sinal me chamando.

O cheiro de sangue e carniça é evidente. Cachorros e gatos pendurados sem a pele causam em mim um sentimento, no melhor dos casos, sádico. Na mesa, coelhos manchados prontos para virarem sopa. Ele começa a gaguejar. “Eu vi. Eu vi o assassino morder um dedo da criança. Acho que ele é canibal”. Nos seus olhos posso ver medo, mas decido continuar atento a tudo.

Rua. Melhor fonte de informações, menos na Escócia, principalmente numa pequena vila. O máximo que consigo é o nome do pai da criança. Dirijo-me a residência do garoto. Batidas na porta indicam minha presença na casa. O rapaz, não muito mais velho que eu, mostrava-se abatido, em prantos. “O seu filho que foi assassinado ontem?”. “Se as roupas dele estão abandonadas e ensangüentadas, acredito que seja ele! Aquela amiga dele tinha que dar merda, filha da prostituta arrebentada!”.

Dália. Encontro ela na estalagem. Ela percebe minha brabeza pela expressão do meu rosto. Ela me conhecia tão bem, meu amor de adolescência. “Porque você não contou da sua filha?”. “Eu não achei necessário..”. Ela percebe que continuo firme na indagação. “Ela tem 8 anos, era muito amiga do menino morto”. “Quero conversar com ela”.

Na casa dela, não achamos a menina. Por ser à tarde, isso é normal. Chá. A temperatura é relaxante. Ela pega na minha mão, assim como fazíamos na juventude. Seu rosto machucado não tirou o brilho de seus olhos. Encará-los enche meu coração de paz. Agora sei o porquê do retorno instintivo para casa. Preciso dela para continuar de onde parei, antes da cruzada.

Sublimemente rápido. Seu cabelo encostado em meu peito nu faz cócegas. Perfeito. Constante. Quente. Ela perdeu a virgindade comigo e eu com ela tempos atrás. Inconscientemente me mantive fiel, ela foi a primeira e será a única para mim. Posso ver no seu sorriso, o carinho que ela sente por mim.

Dália queria mais e mais. Insaciável. Virou-se indicando o que queria fazer. Aquilo me lembrou o padre, o que ele fazia comigo. Levantei e comecei a me vestir. Ela percebe minha indignação e fica com remorso. Amo-a. Logo estou com remorso também. Peço desculpa com meus olhos, ela consente.

Gritos de criança longínquos. A noite intensifica o terror. Saio. Lá fora percebo agitação perto da estalagem. Chegando perto, vejo uma bonequinha com respingos de sangue. Meu amor chega em seguida. Começa a chorar. Desespero.


sábado, 27 de dezembro de 2008

2º Episódio


Veja desde o primeiro episódio http://invernocontraste.blogspot.com/2008/12/1-episdio.html

"sonhos"


Dormir. Não tão fácil quanto era de se esperar. A insônia atacava. Sonhos iam e vinham, mas não conseguia dormir. Posso sentir o tempo passar. De repente, o sono vence. O sonho torna-se cada vez mais nítido. Meu passado volta a assombrar o descanso noturno.

1085. Bandidos invadiam o castelo. Os aposentos de nossa família estavam mais e mais perto dos invasores. Batidas na porta. Meu pai e meu irmão mais velho brandiam suas espadas num esforço inútil em defender seus parentes. Minha mãe me escondeu num alçapão no meio do quarto. Com um tapete em cima, podia ver por uma fresta.

Sangue por todo lado. Meu irmão corria desesperado sem um de seus braços. Meu pai gozava de seus últimos momentos com honra lutando por algo sem salvação. O pescoço de minha mãe jorrava um vermelho quente. Pouco a pouco o barulho diminuiu. O sangue entrava pela fresta. Era como um renascimento, numa placenta não só materna como também paterna e fraterna. Quando o padre me tirou de lá, não tinha sentimento em meu rosto. Minha indiferença o assustava. A expressão final que o bandido realizara horas antes ficaria para sempre, em meu próprio rosto.

Cenário muda. Quarto do padre no mosteiro. “Abaixe a calça meu filho, quero mostrar amor por você”. Sem escolha, obedeci. Uma vez de muitas. O calor do corpo dele me enojava. Aquela posição era humilhante para mim. Todo mês a mesma coisa. Toda vez um banho de longa duração e preces por socorro diminuíam o asco que sentia por mim mesmo. Toda vez prometia que faria algo. Seria esse o motivo dessa volta instintiva à Escócia?

Dália me acorda. Posso ver a luminosidade lá fora. Sua expressão cansada demonstrava mais terror que o habitual. “Harold! Harold the Cunning! Acorde..”. Ela chama meu nome, abro meus olhos e demonstro o carinho que sinto. “Um menino desapareceu, encontramos apenas as roupas”. A ligação entre isso e o sonho me assombra.

Levanto e apronto minhas coisas. Um dia de investigação pela frente. Quando saio, vejo a gravidade da situação. Roupas pequeninas manchadas de um sangue escuro, uma espadinha de madeira lascada. A curiosidade mórbida das pessoas me causa nojo. O açougueiro olha com desdém, não mostra surpresa. Penso em várias coisas, principalmente do que foi feita a lingüiça de hoje. Escócia, sempre nunca o de sempre.


quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

1º Episódio

"Escócia, finalmente."

1103.Escócia. Inverno. A manhã tomava terreno cada vez mais. O sol chegava, assim como eu. Em cima de um cavalo. Espada na bainha. Elmo na cabeça. Cruz no uniforme. Tudo indicava de onde vinha. Jerusalém. Sangue muçulmano velho interrompia o branco homogêneo da minha roupa.

A conquista da cidade santa deixara os cruzados famosos. Andei. Andei. O vilarejo ficava maior e maior. Um cheiro chega ao meu nariz. Fétido, familiar, era o açougue. A criatura grande e mórbida cortava a carne. Mais pestilento impossível. Na rua várias pessoas me olhavam com orgulho, como se o símbolo em meu peito fosse um troféu da vila.

Caminhando pela neve eu percebo coisas que marcaram minha infância. A cidade crescia. O povo não. As antigas gerações me conhecem. O filho do nobre morto. Um filho pobre de um cavaleiro falecido não tem espaço numa vila independente.

Estalagem. Meu ritual alcoólico diário pode novamente assentar-se em minha rotina. Peço uma. Duas. Três. Depois disso paro de contar. Pago por minha cama. Resolvo dar uma volta antes de descansar.

Tudo deserto. Posso ver uma senhora sentada na janela, me observando. Ignoro. Continuo minha rota sem destino. Logo vejo o padre aliciando uma criança de rua. A conquista o excitava, podia ver em seu rosto. Escuto latidos. É o açougueiro cortando cachorros para amanhã. Quase voltando, avisto-a.

Cabelos loiros. Pele excessivamente branca, misturando-se com a neve do chão. Lábios carnudos e expressivos. Bochechas marcadas por abusos e machucados. Era a Dália. Amiga de infância, agora inexplicavelmente atraente, alvo de minhas ânsias. Ela está com um cliente, exercendo a única coisa que pode.

Um homem de má fé abusa de seus direitos, o prazer em fazê-lo aumenta o terror de minha velha amiga. Eu puxo minha espada, atravesso o torso dele. Movimentos variados em seqüência, sadicamente mostro satisfação na morte, assim como a “donzela”. O sangue contrasta com o branco do inverno. Escócia, finalmente.